Segunda-feira, 16.03.09
(...)
Começou a correr um vento suave, que sabia bem, com o brasão que se fazia sentir. Já sentia a areia a esfriar, até que a senti mesmo molhada. Aproximei-me da água e molhei os pés. A água estava boa. Fiquei ali parada a olhar para o horizonte. Era lindo! Lembrei-me da última vez que ali estive e sorri. A vida pode dar muitas voltas, mas as nossas memórias são algo só nosso, que ninguém nos pode tirar. Podem tirar-nos um amor, podem tirar-nos uma posição, podem impedir-nos de alcançar algo na vida, mas tirar-nos as recordações ninguém pode. É algo que está dentro de nós, do nosso coração, e que conosco fica enquanto o quisermos. Sentei-me. Queria inspirar aquele cheirinho a mar. (...)
Terça-feira, 10.03.09
Os cabelos negros,compridos e oleosos, o vestido longo e rasgado assustavam quem passava e a via sentada na escada da igreja. Diziam que era uma bruxa, mas havia quem soubesse qual o seu nome e onde um dia vivera…
Para muitas pessoas ela era so mais uma desgraçada que tinha destruido a sua vida. Para algumas ela era uma infeliz vitima do destino.
O seu nome era Ester. A minha avo contava que a Ester fora um dia uma linda criança de caracois negros e mais tarde uma espantosa mulher. Desde pequena trabalhara para ajudar os pais com o alimento dos cinco irmaos mais novos. Era meiga e educada para todas as pessoas da vila. Cresceu agarrada ao cabo da enxada, com maos calejadas, que a primeira coisa que faziam pela madrugada era amassar a massa do pao, mais tarde vendido pela mae de porta em porta.
A minha avo contava que a Ester era cobiçada por tudo quanto era homem mas nao se iludia com nenhum.
Um dia, enquanto conversava com as amigas a porta da igreja, viu um trevo de quatro folhas no chao. Dizia-se na altura, que se se encontrasse um trevo de quatro folhas a frente de uma igreja, se deveria rezar um Pai-nosso e pedir um desejo. Ester pediu o seu desejo, rezou o Pai-nosso, e guardou o trevo por baixo do seu colchao.
Duas semanas mais tarde, novamente em frente a igreja, enquanto conversava com as raparigas da sua idade, ele surgiu, qual principe encantado. Era alto, bem constituido, olhos escuros, cabelo preto, pele morena. Quando sorriu ela perdeu-se naquele sorriso de dentes perfeitamente alinhados. Nao demorou muito até se encontrarem vezes sem conta. Ao inicio em frente a igreja, onde conversavam na presença de mais pessoas. Depois, por tras da igreja, sozinhos, sucumbiam ao amor e a paixao.
Passaram algumas semanas, até Ester perceber que a sua menstruaçao nao chegava e temeu o pior. Quando contou ao seu amor, ele prometeu leva-la para longe e faze-la feliz, juntamente com a criança gerada por ambos. No entanto, no dia seguinte nao apareceu em frente a igreja. Ester esperou dias a fio, sem sair dali. Nao comia, nao bebia, so chorava. Ao fim de uma semana foi a mae que a arrancou das escadas frias. Quando a jovem contou ao pai o que se passara, este espancou-a. Era uma rameira, indigna da familia que tinha e merecia morrer. Quem a tirou debaixo da ira do pai foi a mae, chorosa, e atirou-a para a rua. Toda rasgada e a escorrer sangue, Ester soube naquele momento que estaria sozinha no mundo, pois ja nem a criança, que o seu ventre carregara horas antes, existia.
Foi entao que Ester voltou para a frente da igreja. Ali esperava por ele, ali bebia recordaçoes e comia sonhos. Ali sobrevivia.
Se Ester tivesse nascido uns bons anos mais tarde o seu destino poderia ter sido diferente. Assim, foi so mais um martir nas maos de uma sociedade machista.
Quando se ouviu um grito vindo da porta da igreja, naquela manha de primavera, a vila soube. Ester havia morrido. De fome, de sede, de frio, de tristeza? De injustiça, desamparo e humilhaçao por parte do Mundo.
Historia minha e ficticia para a Fabrica de Historias
Quarta-feira, 04.03.09
Afinal para que serve um blog?
As vezes pergunto-me isso mesmo...Estou neste mundo blogosférico ha pouco mais de meio ano e ja me diverti muito, ja soltei gargalhadas, ja me apeteceu apertar o pescoço a alguém, ja sorri, ja fiquei sem reacçao.
Tenho percebido no entanto que ultimamente (talvez até tenha sido sempre assim, nao sei!) existem muitas guerrilhas... Luta pelas "audiencias", quais Sic, Tvi e Rtp. Blogs bons que deixam de existir por causa de anonimos manhosos. Pessoas que criticam outros blogs, porque acham que o seu é melhor, pessoas que deixam a "fama" subir a cabeça... enfim, um apanhado de situaçoes que me deixam deveras boquiaberta... é que se ha por ai um prémio qualquer ou um oscar, ou uma faixa dourada para o melhor blog, se houver por ai uma boa quantia em dinheiro para quem estiver entre os primeiros do ranking nacional, avisem-me por favor! Duvido que com a minha forma simples de escrever consiga algo, mas! posso sempre tentar nao é?
Todos os dias encontro blogs que considero futeis... outros que começo a ler e desisto logo, outros ainda que até me fazem perguntar a mim mesma "what the fuck?". E para essas situaçoes é que serve a cruzinha no canto superior do ecra. Mas, um blog é algo pessoal, que sera lido sim, caso contrario nao seria um blog, mas sim um caderninho fechado a sete chaves, mas que nao tem necessariamente de agradar a "gregos e troianos". Nao tem necessariamente que passar uma mensagem sobre politica, religiao, literatura, ou até mesmo liçoes de vida. Cada um escreve sobre o que quer... Hoje até posso escrever sobre algo muito sério como a pena de morte e amanha falar do rato que atropelei na rua... So what? Isso faz de mim futil, degradante? Nao tenciono ser professora ou imagem para as pessoas. Sou eu e eu so. E tenho pena que algumas pessoas tenham essa mesma intençao... assim c omo das que se contentam com a opiniao dos outros sem se preocuparem com a sua propria opiniao...
Sinto pena que até mesmo na blogosfera surjam estes conflitos idiotas... e depois falam-se de guerras, violencia, criminalidade? Por favor... se existem problemas por causa de uma mera plataforma abecedaria...
E uma coisa que reparo... quando um dos meus tags é "sexo" as visitas triplicam... Fantastic!
De qualquer forma, obrigado a quem me le, e a quem também me diverte com o que escreve, a quem escreve pensando em si e em quem o le, mas nao nas audiencias baratas que nao nos dao nada...
Sexta-feira, 06.02.09
Eis que enquanto vagueava na minha caixa de correio (mesmo de gaija que nao tem mais nada para fazer - wrong! Ja trabalhei muito hoje e por isso decidi deixar o resto para segunda-feira!) encontrei o seguinte texto... e digam la, nao esta uma perolazinha??
"Há bué da time, havia uma garina cujo cota já tinha esticado o pernil e que
vivia com a chunga da madrasta e as melgas das filhas dela.
A Cinderela (Cindy p'ós amigos), parecia que vivia na prisa, sem tempo para
sequer enviar uns mails.
Com este desatino todo, só lhe apetecia dar de frosques, porque a madrasta
fazia-lhe bué da cenas. É então que a Cindy fica a saber da alta desbunda
que ia acontecer: Uma rave!!!
A gaja curtiu tótil a ideia, mas as outras chavalas cortaram-lhe as bases.
Ela ficou completamente passadunte, mas depois de andar à toa durante um
coche, apareceu-lhe uma fada do baril que lhe abichou uma farda baita
bacana, ela ficou a parecer uma g'anda febra. Só que ela só se podia
afiambrar da cena até ao bater das 12.Tás a ver? A tipa mordeu o esquema e
foi para a borga sempre a bombar.
Ao entrar na party topou um mano cheio da papel, que era bom comó milho e
que também a galou logo ali.
Aí a Cindy, passou-se dos carretos, desbundaram "ól naite long", até que ao
ouvir as 12, ela teve de se axandrar e bazou.
O mitra ficou completamente abardinado quando ela deu de frosques e foi
atrás dela, mas só encontrou pelo caminho o chanato da dama.
No dia seguinte, com uma alta fezada, meteu-se nos calcantes e foi à procura
de um chispe que entrasse no chanato.
Como era um ganda cromo, teve uma vaca descomunal e encontrou a maluca, para
grande desatino das outras fatelas que ficaram anhar.
Fim: Tá-se bem. "
E mai' nada!
Segunda-feira, 26.01.09
Eu caminhava rapido, perdida nos meus pensamentos, tao distraida que nao reparei em nada. Nao reparei nela, que caminhava lentamente, que seguia perdida entre o passado e o presente. Nao reparei na personagem que devagarinho seguia o seu rumo.
Chocamos. Ela caiu desamparada no chao e eu afligi-me. Quando se tem cerca de 85 anos e se cai desamparada no chao é simplesmente um perigo enorme... Baixei-me para ajuda-la a levantar e foi quando lhe toquei no braço, que me olhou com aqueles dois olhos profundos.
Foi ai que a senti. Os cabelos brancos que deveriam impor respeito eram por si desprezados. Presos por uma longa trança, nao estavam propriamente domesticados. Continuei a senti-la. As rugas, vincadas, portadoras de uma sabedoria, de uma experiencia de vida, mostravam que por aquela vida muito passou, que naquela vida muito se viveu.
O olhar... mais terno que o de um cachorrinho, meigo a procura de um carinho. Olhar aguado que me fez sentir a dor de uma filha, a tristeza de um corpo estéril, a alegria do que restava de uma jovem sonhadora.
Senti...
Alcançara muito na vida. Chegara longe. Os olhos sabios diziam que havia sido alquém forte na vida. Sofrera certamente. Alguma vez passou fome? Nao sei, nao consegui ver. As maos... so olhando se podia ver que nunca estivera parada. Sorriu-me. Aquele sorriso... portador de toda a luz do mundo. E eu ali parada a olhar aquele rosto, tao pequenino e enrugado que me dizia tanto... Sorri-lhe de volta e os olhos marejados, como que constantemente, trouxeram-me todo brilho e amor deste mundo. Um momento magico. Inexplicavel. Tolo talvez. Mas intenso.
Largou umas doces palavras:
- Obrigada minha filha...
Dizendo isto, com toda a doçura que se possa alguma vez saborear em tres palavras, seguiu o seu caminho, por momentos interrompido por mim...
Vi-a, caminhar lentamente, ja de costas viradas para mim e eu, parada, a olhar... Os carros continuavam a passar certamente, e outras personagens também, mas eu nao dava conta de nada, perdida em sensaçoes estranhas...
Um dia foi criança, cresceu e foi adolescente. Também errou, também pecou. Foi amada, mas nao amou... Viveu como soube, mas nunca como um dia desejou. Procurou e nao encontrou. Sorriu, mas nunca feliz na totalidade. Chorou, muitas vezes sem saber porque. Perguntou, mas nunca ninguém respondeu... Quis, mas nunca aconteceu...
Enquanto ela, muito lentamente, seguia o seu caminho, insisti a olha-la... e vi-me... ali vou eu, se algum dia chegar aos 85 anos...
(texto ficticio para a fabrica de historias)

Quinta-feira, 22.01.09
Pois nao... é verdade. Nao se esquece. Mas quanto a mim nao é por ser inesquecivel. Nao é porque nao voltamos a amar da mesma forma, ou porque aquela pessoa era um deus tal, que pensamos nele a cada dia e minuto das nossas vidas... nao é tudo tao linear... Pelo menos, falo por mim, e sinceramente acredito piamente que se reflecte na maioria dos casos...
O nosso primeiro amor é quase sempre vivenciado nos primeiros anos da nossa vida como adultos. é na altura em que começamos a sair, a viver coisas novas. é nessa altura que descobrimos também o prazer e o conforto de se ter alguém ao nosso lado, e como tal certas coisas, como ir ao cinema, cozinhar, ou ir a uma festa de aniversario de um puto da familia, ganham uma nova dimensao quando feitas a dois.
Nessa altura somos também mais ousados, e na verdade, muitas das vezes temos mesmo de ser ousados. Se queremos fazer amor, tem mesmo que ser "onde calha", um bocado as escondidas, sem ninguém se aperceber. Com a minha idade agora, e mais velhos, ja nao precisamos andar com invençoes para arranjar espaço para. Nao é preciso recorrer a sitios extremamente perigosos, porque ja ha o "na tua casa ou na minha" porque a maior parte das pessoas ja tem o seu espaço. Ja nao ha aquele "medo" de admitir que se quer estar so com o namorado. Ja nao ha a necessidade de aproveitar cada segundo porque amanha pode nao dar. Quando ficamos mais velhos, so nao da se nao quisermos e acabou. Nao me venham com tretas.
As coisas também sao ditas com muito mais naturalidade enquanto jovens. Depois de adultos e mais experientes, por vezes calejados, aprendemos a nao dar tudo de nos. Instintivamente colocamos obstaculos nos nossos sentimentos, de modo a nao mostrar ao outro a importancia que tem para nos. Quando jovens, perdemos por vezes o orgulho, aceitamos muitas coisas e gritamos ao mundo o que sentimos, porque afinal é do nosso"grande amor" que estamos a falar.
Além disso, os melhores momentos da nossa vida: a adolescencia, as maluqueiras na escola secundaria, a entrada para a faculdade ou o iniciar no primeiro emprego sao quase sempre partilhados com esse grande amor. Logo, mais tarde, quando nos recordamos dessas situaçoes, vem o melro atrelado nas recordaçoes.
Significa que esse amor é o grande amor? Significa que, por ter sido o nosso primeiro amor, sera o nosso grande amor, para sempre guardado no nosso coraçao num cantinho qualquer com uma placa a dizer "tinha tudo para ser perfeito"? Nao me acredito...
Sera o unico amor que nos dara vontade de dar este mundo e o outro para o fazer sorrir?
Sera o unico amor que nos fez perceber o que é amor, ternura e partilha?
Nao creio em nada disso e sim, sou uma descrente... mas simplesmente ja vi muito neste curto tempo de vida, e sei, que como nada dura para sempre, também nada é impossivel. E nada mas mesmo nada sera amanha o que é hoje... nao no amanha, amanha, mas no amanha dentro de anos.
Nao estou ressabiada. Estou sim acordada. E é tao bom viver de olhos abertos... e nao, nao se perde nada...e sim, vive-se na mesma.
Terça-feira, 20.01.09
Acordei mais uma vez com a agua a escorrer-me pela testa... Aquele rosto nao me largava. Por muito que tentasse, nao conseguiria esquecer aquela noite.
Levantei-me e fui tomar um duche. Deixei que a agua quente me massajasse as costas. Nao consegui impedir as lagrimas. Nao contei a ninguém, e nunca iria contar. é um segredo que ira comigo até ao tumulo. Tenho vergonha, e tenho medo, muito medo do que possam pensar, do que possam dizer, do que possam fazer com a minha vida...
Quando tocaram a campainha ainda eu estava no duche. Apressei-me a vestir e abri a porta. A minha irma entrou e sentou-se na sala.
- Joao, eu gostava mesmo de saber o que se passa contigo...
Olhei-a de soslaio... ela e o raio da mania que é sabichona. Se me deixasse sossegadinho pelo menos uma vez na vida. é por isso que detesto ter uma irma mais velha. Pensa que sabe tudo e no fundo nao conhece o proprio irmao.
A nossa conversa nao chegou a lado nenhum. Eu nao lhe iria contar nada do que se passara ha uns meses, nem lhe contaria que hoje iria a uma consulta. O resultado dos exames também ninguém sabera. Se for positivo? Sou egoista sim! Nao conto, nao! Tenho direito a viver com dignidade. Tenho direito que continuem a olhar para mim com normalidade, e nao como quem carrega uma cruz capaz de a passar para as costas de cada um.
Eu nao pedi nada disto... Nao pedi o que aconteceu naquela noite. Tive culpa sim. Bebi, deixei-me cair, nao me cuidei, mas foi so nisso que tive culpa. O resto veio qual castigo dos céus, se é que isso existe. Tenho as minhas duvidas perante tanta crueldade.
Ela insistiu em saber o que se passava comigo. O porque de ter terminado a relaçao com a Andreia. O porque de ter deixado a minha carreira de professor. O porque de me manter fechado em casa.
- Estou bem, normal, so quis mudar de vida... - respostas caoticas, de um ser caotico, numa vida nao menos caotica...
Ela saiu, completamente frustrada por nao levar as informaçoes que tencionava passar a mae. Eu deixei-me cair no sofa. Adormeci e vi aquele rosto. Eu gritava de dor. Acordei.
Olhei para o relogio. Estava na hora.
Entrei na clinica. Esperei pela minha vez. Nao foi preciso o médico me ler o resultado do exame de sangue. No seu olhar percebi tudo.
Enquanto caminhava para casa, apertava as maos.
- Positivo... deu positivo... e agora?
E agora? O que vai ser da minha vida? Quanto tempo vai durar a minha vida? O que vou fazer?
Nao posso contar a ninguém... se eu proprio nao me aceito neste estado, os outros repudiar-me-ao...
Nao posso... e no entanto, continuo a ser eu, o Joao, amigo dos meus amigos, bom filho, bom funcionario... sou eu e nao sou... porque agora, no meu dia-a-dia existe mais um sentimento, que jamais desaparecera... o medo... medo que descubram...
Nao, nao podem descobrir...
(texto ficticio criado por mim para a fabrica de historias)
Terça-feira, 13.01.09
Quando ela me estendeu aquele envelope amarelo, ja gasto pelo tempo, os meus olhos brilharam de emoçao… sempre esperara por aquela carta, mas esta demorara mais de vinte anos a chegar…
Foi a tremer que a abri, com muito cuidado, para nao rasgar o envelope, quase tao precioso quanto o conteudo.
E quando comecei a le-la, as lagrimas rolaram-me pela face…
« Querida filha,
Depois de tantos anos em silencio resolvi escrever-te. A coragem que me faltava apareceu-me com a doença que apenas me deixa mais uns meses vivo… Sei que jamais terei o teu perdao. Sei que que nao o mereço… mas por favor acredita que durante todos estes anos pensei em ti.
Quando vos abandonei fui um cobarde. Eu sei… queria mais da vida e so muito tarde me apercebi que a tua mae nao era a mulher que eu procurava. Nao consegui agir da maneira certa e fugi.
Agora, nao te conheço. Nao sei como és. Nao sei se seguiste a faculdade, se ja trabalhas ha alguns anos… Talvez até ja sejas casada, eu ja tenha netos, e estes até ja saibam falar… Nao faço ideia do rumo que a tua vida levou… afinal tinhas apenas tres anos quando sai de casa. Sera que ainda te recordas do meu rosto ?
Depois de sair de casa, viajei para o Canada, onde comecei a trabalhar… nao foi facil… o processo de adaptaçao foi complicado mas entretanto conheci uma mulher espantosa, a minha actual esposa, e foi com a sua ajuda que ultrapassei muitas das dificuldades. Hoje temos dois filhos maravilhosos, os teus irmaos. O Joao, mais novo do que tu seis anos, entrou este ano para a universidade. O mais novo, o André, é jogador profissional de hoquéi e estuda num colégio privado. Eles ja sabem da tua existencia e insistem em conhecer-te.
Quando te sentires preparada e quiseres viajar até ao Canada, tens aqui uma grande casa com piscina, onde voces irao gozar muito… Podes ficar o tempo que quiseres, seras acolhida como membro da familia.
Por favor querida filha, considera a possibilidade desta viagem. Lembra-te que o teu querido pai ja nao aguenta mais do que meio ano vivo, e gostaria imenso de te ver.
Com todo o meu amor,
Pai”
Peguei numa folha e numa caneta e ainda a tremer, escrevi:
« Querido Pai,
Durante anos aguardei noticias tuas. Enquanto isso, ia vendo a mae lavada em lagrimas, sem saber se ela chorava por saudades, se por tristeza, se por nao ter dinheiro para pagar as dividas que deixaste. No entanto, o meu coraçao arranjava sempre uma desculpa para a tua ausencia e o teu silencio.
Cresci sem pai, porque a mae nao encontrou nenhum homem espantoso. Alias, acho que nunca procurou e preferiu nao aproveitar as oportunidades que lhe apareceram, talvez com medo de sofrer novamente.
Quando fiz dezasseis anos comecei a trabalhar num restaurante. A mae nao tinha dinheiro suficiente para tudo, e eu queria muito ajuda-la a liquidar as dividas.
Ainda trabalho nesse restaurante… ha oito anos… mas estou agora a terminar o ensino secundario e espero conseguir entrar para o curso de biologia no proximo ano lectivo.
Nao vivo numa casa com piscina… alias a minha casa é um pequeno T1 onde vivo com uma tia. Pois é, ja nao vivo com a mae. Ela faleceu ha tres anos. E é mesmo por essa razao que te respondo a carta que me mandaste, porque o seu ultimo pedido foi que te perdoasse.
Entao aqui vai… Morre em paz, pai. Estas perdoado.
Com amor,
Da tua filha. »
Quarta-feira, 03.12.08
Quando o telefone tocou nada fazia adivinhar o que eu iria ouvir. Deixei-me cair no sofa, com dificuldade em respirar. A minha cabeça começou a rodar e eu senti nauseas. Fui a correr vomitar, e as lagrimas rolaram. Vesti o casaco e corri para a garagem.
A caminho, as palavras do Ricardo borbulhavam na minha memoria, e eu so queria chegar a tempo. O tempo… algo mais precioso do que conseguimos aperceber-nos na correria diaria das nossas vidas.
Quando cheguei ao hospital, entrei no serviço de urgencias, vesti uma bata, e preparei-me para entrar no bloco operatorio. Uma mao agarrou-me.
- Dra. Luisa, nao va… aguarde pelo Dr. Ricardo.
Soltei-me e nao lhe dei ouvidos. Entrei no bloco operatorio. Ele estava ali, deitado naquela maca, banhado em sangue. Aproximei-me e mais uma vez o sistema nervoso mexeu com a minha capacidade mental de encarar friamente o que estava a ver. Acariciei-lhe o rosto sem expressao, e pela primeira vez na minha vida, rezei. Ali estava o amor da minha vida, o meu companheiro, a pessoa mais meiga e solidaria que alguma vez havia conhecido, o médico mais competente, o filho mais carinhoso. Senti-me desfalecer, até sentir-me ser arrastada para o corredor. Senti molharem-me o rosto e acordei, quase que certa de que nao passava de um pesadelo. Estava enganada.
- Luisa… eu sinto muito…
- O que aconteceu ? – ja nao conseguia evitar o pranto. As lagrimas eram agora uma corrente de agua limpida que me escorria pelo rosto. Eu sabia que nao havia nada a fazer, mas nao queria ouvi-lo.
- Foi um acidente. Tens que ser muito forte.
- Deixa-te de merdas e diz-me por favor quais sao as possibilidades do Joao sobreviver.
- Luisa, é morte cerebral… - e ao dizer isto, o Ricardo sempre tao forte, tremia como varas verdes.
Nao respondi. Deixei-me desfalecer de novo.
Quando voltei a mim, o Ricardo ainda estava ao meu lado.
- Desculpa o que vou falar contigo, mas nao ha tempo a perder.
- Eu quero saber como foi o acidente. Tudo.
- Calma… um condutor embriagado espatifou-se literalmente contra o carro do Joao.
A raiva apoderou-se de mim.
- Morreu ? – perguntei.
- É sobre isso que precisamos falar. – agarrou-me numa mao. – Luisa, esse homem sofre de cardiomiopatia. Depois deste acidente, ficou muito mal. Ja nao ha esperança para o Joao, e tu sabes a sua posiçao sobre a doaçao de orgaos.
Retirei a minha mao, como que para acentuar o meu desagrado.
- Tu estas a sugerir que o Joao ajude a salvar a vida de quem o matou ? Nunca !
- Calma Luisa ! Tenta pensar !
- Tento pensar ? O Joao era teu amigo, por amor de Deus ! Cresceram juntos ! Tu eras amigo dele !
- E sou, e serei sempre ! Mas acima de tudo sou médico, tu és médica, o nosso dever é salvar vidas, sejam estas de quem forem.
- Eu sou médica, mas acima de tudo tenho sentimentos, sou humana !
- Se és humana, entao saberas o que fazer Luisa.
Entrei novamente no bloco operatorio e abracei o corpo vermelho que jazia naquela maca. Lembrei-me das inumeras conversas que haviamos tido sobre doaçao de orgaos. Sobre a sua posiçao em relaçao a isso. Sobre a promessa que me havia obrigado fazer de que doaria os seus orgaos caso ele falecesse antes de mim. Mas eu nao podia. Nao podia deixar que se salvasse a vida daquele condutor bebedo que acabou com a nossa vida… Nao podia !
Quando me preparava para ir a casa, o Ricardo voltou e antes que eu saisse, apelou :
- Luisa, pondera por favor… nao ha tempo a perder… aquele homem nao pode perder mais tempo…
Tempo… se eu soubesse naquela manha que nao iria ter tempo de me despedir do Joao… se eu soubesse no dia anterior, teria preparado a sua refeiçao preferida em vez de lhe pedir para nos fazer uma sopa. Teria dormido abraçada a ele, em vez de ficar deitada no sofa a ler… se eu soubesse que o tempo nao espera, e nao da segundas oportunidades… se eu soubesse… nao teria desperdiçado um minuto sem lhe demonstrar o quanto o amava.
Voltei-lhe as costas. A saida pude ver uma esposa desesperada tal como eu, mas agarrada a duas crianças. Nao quis reparar nas crianças, nao quis sentir pena. Nao, eu estava naquela situaçao por culpa do familiar deles.
Em casa, deixei-me adormecer no sofa e sonhei com o Joao. A conversa sobre a doaçao de orgaos foi o tema e acordei sufocada e lavada em lagrimas. Tomei um duche. Fui para o hospital e despedi-me do meu amor… Assinei um papel e voltei para casa.
Passaram seis meses. Sinto a tua falta Joao… hoje mais do que ontem… penso em ti constantemente. E hoje, nesta vespera de Natal, sei o que vou fazer.
Visto o casaco e entro no carro. O destino é a casa de quem ficou com o teu coraçao, essa parte de ti que ainda vive…
Estaciono em frente a casa. Vejo-o a entrar cheio de embrulhos e duas crianças a gritarem de alegria. Ele nao me ve. Mas ele tem um pedaço de ti, meu amor…
Deixo-me chorar, sentada no carro gelado e vazio de ti. A chuva começa a cair, e com ela a certeza de que tu nao mudaste o mundo, nao salvaste a humanidade, mas mudaste a vida de um homem e da sua familia, e mudaste a minha… fizeste-me perceber que esta vida nao para, que o tempo nao perdoa, que é escasso para desperdiça-lo com magoas… e fizeste-me entender que esta vida é dar sem esperar receber, perdendo por vezes, como foi o nosso caso… seras sempre o meu heroi…
Ps… perdoem a falta de acentuaçao ;)
Quarta-feira, 10.09.08
Cheguei à calçada da praia… e tudo me voltou à mente… aquela cena horrível, que delineou os contornos da minha vida… Doeu… Tudo doeu… a descoberta, a desilusão… mas o que mais doeu foi perdê-lo… isso acabou comigo… eu sei…
Quanto tempo fiquei ali, não sei… não me perguntem… e não se perguntem também, porque isso não interessa… afinal, o tempo tem só e apenas o significado que lhe queremos atribuir… e eu, neste momento, não quero atribuir-lhe significado nenhum… Quero sim, ficar com esta nova pessoa que me tornei, azeda, magoada, ferida pelas facadas da vida…
Quando cheguei ao escritório já passava da hora de almoço. O meu chefe olhou-me com uma cara furiosa, mas não foi capaz de me chamar a atenção. Isso é uma das coisas que mais me chateia… uma das coisas que mais me revolta.. não preciso, não quero que sintam pena de mim ! Eu já sinto pena de mim ! Será que não é suficiente ? Quando me olho ao espelho, sinto tristeza pelo rumo da minha vida !!! Será que vocês não podem evitar ter pena de mim? Tudo isso vai-me azedando dia após dia…
Trabalhei até mais tarde… Quando passei por casa da Marcela, não vi o carro do marido dela… Quase todas as luzes estavam apagadas, com excepção da do seu quarto… Não tive coragem de bater à porta… Preferi deixá-la chorar… Sim… porque eu sei que ela chora, todas as noites enquanto espera que ele venha para casa…
Decidi não apanhar autocarro nenhum… caminhar meia horita até casa só me faz bem… O meu organismo está a envelhecer, e o meu metabolismo já não trabalha tão rapidamente, logo tenho mesmo de começar a fazer exercício para não engordar demais…
Enquanto caminhava, olhava para o céu estrelado, sem vestigens de nuvens, sem ponta de sinal de que o dia seguinte não seria solarengo e morno. Vi um mendigo, que dormia no banco do jardim... coberto com jornais, com uma taça ao seu lado... apeteceu-me chorar... pensei no que teria sido aquele homem. Será que fora sempre um mendigo ? Será que um dia havia tido uma família ? Teria sido orfão ?
Meti a mão no bolso... não tinha muito dinheiro, mas o que tinha deixei na tacinha... Estava a agir contra os meus principios... sempre havia dito que não dava esmolas, porque achava que todos tinham bom corpo para trabalhar... mas afinal, que sabemos nós da vida ? Eu própria fui um dia uma grande mulher, e agora sou uma desnorteada, bebeda, que vive o dia a dia da maneira mais fácil que encontra...
Ele não acordou... e ainda bem, porque eu no fundo desconhecia o seu mundo, e como a qualquer pessoa, o desconhecido amedrontava-me...
Cheguei a casa e atirei-me para a cama... na mesinha de cabeceira, ainda estava a nossa foto... ele com os seus olhos azuis muito vivos... o seu cabelo escuro... o seu sorriso inconfundível... ao lado da foto, uma garrafa de whisky...
Pego no meu caderno e decido escrever... descrever o meu dia... fazer o meu diário... talvez isso me afaste da bebida...
Enquanto escrevo, estou a olhar para a garrafa... esta olha-me também... não dá... vou parar de escrever, vou buscar um copo com gelo, e beber um « drink »... ou dois ou três...
Jo