Diz-se que é normal… Que cada um segue a sua vida depois de adultos… Que é assim mesmo e nao ha nada a fazer…
Diz-se que temos que aceitar… e é o que estou a tentar fazer…
Vivi dois anos fora de casa… quando vivi em Portugal sozinha, depois da minha familia se mudar para ca… Custou-me imenso.
Agora, ja ca estou ha quase quatro anos. A Mara vai-se mudar. Ela e o namorado arranjaram uma casa linda e a minha pequena vai ganhar asas e voar… Este fim-de-semana ja pode levar caixas para a casa. Para a proxima semana ja se muda… e eu tive muito tempo para me habituar a ideia, mas na verdade esta a doer. Deus… esta mesmo. Ainda anteontem o Carlos e ela chamaram-me para ir a rua fumar, depois do jantar, e eu pensei « como é que vou habituar-me ao silencio depois de eles se irem ? ».
Sim eu sei… é para o bem dela e desde que esteja feliz, nao é ? Eu sei… mas custa… as minhas meninas estao a ir embora… e eu sou mesmo amarrada a elas.
Ainda dizem – ter filhos. Ter filhos??? E quando eles crescerem e forem embora? Sou egoista, nao gosto de abrir mao de quem amo…
Cheguei à calçada da praia… e tudo me voltou à mente… aquela cena horrível, que delineou os contornos da minha vida… Doeu… Tudo doeu… a descoberta, a desilusão… mas o que mais doeu foi perdê-lo… isso acabou comigo… eu sei…
Quanto tempo fiquei ali, não sei… não me perguntem… e não se perguntem também, porque isso não interessa… afinal, o tempo tem só e apenas o significado que lhe queremos atribuir… e eu, neste momento, não quero atribuir-lhe significado nenhum… Quero sim, ficar com esta nova pessoa que me tornei, azeda, magoada, ferida pelas facadas da vida…
Quando cheguei ao escritório já passava da hora de almoço. O meu chefe olhou-me com uma cara furiosa, mas não foi capaz de me chamar a atenção. Isso é uma das coisas que mais me chateia… uma das coisas que mais me revolta.. não preciso, não quero que sintam pena de mim ! Eu já sinto pena de mim ! Será que não é suficiente ? Quando me olho ao espelho, sinto tristeza pelo rumo da minha vida !!! Será que vocês não podem evitar ter pena de mim? Tudo isso vai-me azedando dia após dia…
Trabalhei até mais tarde… Quando passei por casa da Marcela, não vi o carro do marido dela… Quase todas as luzes estavam apagadas, com excepção da do seu quarto… Não tive coragem de bater à porta… Preferi deixá-la chorar… Sim… porque eu sei que ela chora, todas as noites enquanto espera que ele venha para casa…
Decidi não apanhar autocarro nenhum… caminhar meia horita até casa só me faz bem… O meu organismo está a envelhecer, e o meu metabolismo já não trabalha tão rapidamente, logo tenho mesmo de começar a fazer exercício para não engordar demais…
Enquanto caminhava, olhava para o céu estrelado, sem vestigens de nuvens, sem ponta de sinal de que o dia seguinte não seria solarengo e morno. Vi um mendigo, que dormia no banco do jardim... coberto com jornais, com uma taça ao seu lado... apeteceu-me chorar... pensei no que teria sido aquele homem. Será que fora sempre um mendigo ? Será que um dia havia tido uma família ? Teria sido orfão ?
Meti a mão no bolso... não tinha muito dinheiro, mas o que tinha deixei na tacinha... Estava a agir contra os meus principios... sempre havia dito que não dava esmolas, porque achava que todos tinham bom corpo para trabalhar... mas afinal, que sabemos nós da vida ? Eu própria fui um dia uma grande mulher, e agora sou uma desnorteada, bebeda, que vive o dia a dia da maneira mais fácil que encontra...
Ele não acordou... e ainda bem, porque eu no fundo desconhecia o seu mundo, e como a qualquer pessoa, o desconhecido amedrontava-me...
Cheguei a casa e atirei-me para a cama... na mesinha de cabeceira, ainda estava a nossa foto... ele com os seus olhos azuis muito vivos... o seu cabelo escuro... o seu sorriso inconfundível... ao lado da foto, uma garrafa de whisky...
Pego no meu caderno e decido escrever... descrever o meu dia... fazer o meu diário... talvez isso me afaste da bebida...
Enquanto escrevo, estou a olhar para a garrafa... esta olha-me também... não dá... vou parar de escrever, vou buscar um copo com gelo, e beber um « drink »... ou dois ou três...